UMA LEITURA CLÁSSICA DO “ESPAÇO DO CIDADÃO” NA DEMOCRACIA

Tácio José Natal Raposo, Elói Martins Senhoras

Resumo


RESENHA

 

A importância da vida e da obra de Milton Santos extrapola as fronteiras brasileiras e sul americanas justamente pelo amplo reconhecimento internacional de seu esforço cientifico, acadêmico e também de cidadania para construir um pensamento crítico sobre as relações do homem no espaço que fora forjado em bases humanistas e éticas, razão pela qual ele tenha sido reconhecido ao longo do século XX como um dos mais destacados epistemólogos das Ciências Geográficas.

Contando com 40 livros e cerca de trezentos artigos publicados em revistas cientificas no Brasil e no exterior, Milton Santos não apenas inaugurou uma nova vertente crítica do pensamento científico com ampla influência acadêmica, a Geografia Nova, mas também foi amplamente reconhecido em vida por meio de 15 títulos de Doutor Honoris Causa e de vários prêmios e honrarias, incluído o Prêmio Internacional Vautrin Lud, considerado o Nobel da Geografia.

A numerosa e complexa obra legada por Milton Santos possui diferentes fases, paradigmas científicos e marcos de teorização que contribuíram para a conformação de distintas leituras críticas sobre ontologia e a fenomenologia das relações humanas no espaço, embora, sempre compartilhando entre si o mesmo objetivo finalístico de fomento epistemológico a uma geografia cidadã (ELIAS, 2002).

Tomando como referência o livro “O espaço do cidadão”, publicado inicialmente em 1987 em um contexto de redemocratização brasileira, procura-se mostrar este texto miltosantiano como uma obra clássica que oportuniza uma reflexão profunda sobre o que é ser cidadão, justamente na estrutural crise da democracia representativa no mundo, inclusive no Brasil em função das conjunturais instabilidades sociopolíticas difundidas por mobilizações sociais desde o ano de 2013.

A obra surge em um contexto de reflexão sobre a redemocratização do país no qual o autor demonstra bem que a luta pela democracia não é simples, mas antes, tortuoso frente ao campo de poder consubstanciado assimetricamente pelo sistema conjugado por forças de verticalidade e horizontalidade, razão pela qual a cidadania não se esgota com a promulgação de uma nova Constituição e a definição de uma democracia representativa.

A obra aponta para um problema estrutural no país de dependência no qual os modelos políticos e cívicos são passivos como instrumentais do modelo econômico, definido internacionalmente como verticalidade, num perverso processo de manipulação das massas onde estas são despertadas para a necessidade, o interesse, a vantagem de ampliação do consumo, mas não para o exercício da cidadania.

A visão clássica do livro evidencia que só existe uma democracia verdadeira, quando o modelo econômico é subordinado ao modelo cívico, demonstrando que o fortalecimento das horizontalidades de uma democracia deliberativa, alicerçada na participação social, se faz como condição sine qua non para a superação de um sistema assimétricos dinamizado inicialmente por verticalidades internacionais de natureza econômica e em seguida por verticalidades políticas.

Com base em uma leitura de que as ciências geográficas apresentam, tanto, um discurso descritivo, quanto, um discurso normativo, o livro “O espaço do cidadão”, foi estruturado em treze capítulos que objetivam não apenas mostrar os problemas estruturais que regem a democracia no país, mas principalmente prescrever que a cidadania deve ser uma condição determinante da política e anterior à economia por meio de um processo sócio construtivista fundamentado na cultura e no espaço.

A análise construída transversalmente ao longo dos treze capítulos fundamenta-se em uma concepção de ciência geográfica que, tanto, descreve criticamente, sob uma leitura neomarxista, quais são os problemas estruturais do funcionamento sócio espacial, quanto, prescreve subsídios normativos para se repensar o seu adequado fundamento com fundamentação no fortalecimento da cidadania.

Por um lado, o livro descreve ao longo de todos os capítulos os principais problemas e dilemas estruturais de um sistema internacional e assimétrico de verticalidades econômicas que repercutem nacionalmente na determinação das concepções ideológicas e conceituais dos modelos políticos verticais, inclusive se difundindo nos modelos cívicos horizontais.

Por outro lado, a obra, prescreve uma leitura crítica para se avançar na construção do espaço da cidadania, tomando como núcleo ontológico a passagem de um padrão de democracia representativa permeado pelas lógicas do elitismo no modelo político e do consumismo no modelo econômico em direção a um padrão de democracia deliberativa por meio da construção de um modelo cívico no qual se valoriza a lógica do pluralismo de diferentes valores e maior participação do cidadão nas decisões.

Na dimensão descritiva, os capítulos do livro apresentam uma clara visualização sobre as razões estruturais da consolidação das tendências de homogeneização dos espaços sem valores de cidadania sincrônicas às tendências de heterogeneização espacial de instituições ou serviços públicos que seletivamente acabam hierarquizando o grau de acessibilidade dos cidadãos.

Parte-se da premissa de que o sistema capitalista e os diferentes discursos econômicos construídos em razão das transformações da divisão social do trabalho são caracterizados pela leitura crítica de Milton Santos como os responsáveis pela atrofia da cidadania, seja nos momentos positivos dos ciclos econômicos, quando o consumo se torna um fim em si mesmo e o cidadão se torna um mero consumidor, seja, nos momentos negativos dos ciclos econômicos, quando surgem retrocessos e cortes em temas de conquistas sociais e políticas a fim de se ajustar a economia nacional.

Em um contexto estrutural de mutilação dos direitos civis e políticos, o individuo se converte de cidadão imperfeito a consumidor mais que perfeito, promovendo um grande impacto negativo da cultura do consumo na vida coletiva e na formação do caráter de cada pessoa, razão pela qual o espaço vivido passa a ser marcado por enorme desigualdades e injustiças, constituindo-se, em um espaço sem cidadãos.

O espaço sem cidadãos se constrói como fenômeno não apenas devido à difusão da cultura do consumidor, onde prevalece a alienação da moda, a especulação mobiliária e a construção de templos modernos (shopping centers e os supermercados), mas também, em razão de um processo esvaziamento dos espaços de cidadania, no qual a cultura da cidadania se dilui diante da falta de recursos humanos e equipamentos em hospitais, postos de saúde, escolas, ou, em órgãos de atendimento ao cidadão.

Na dimensão normativa, os capítulos do livro prescrevem que a desalienação é um processo natural em um sistema econômico assimétrico, justamente por existirem momentos de crise nos ciclos econômicos que forçam a reflexão social e por conseguinte impõem incrementais processos de mudança comportamental e de formação do capital social local com base em novas estratégias e lógicas que não necessariamente obedecem às tradicionais verticalidades econômicas.

Observa-se nesta leitura neomarxista, uma clara leitura de geografia crítica fundamentada na dialética, embora, com uma natureza normativa ligada à uma concepção democrática que busca novos valores sem ser golpista, na qual a democracia deliberativa se estrutura por meio de participação social em função das especificidades do espaço e da cultura que acabam se manifestando na formação de capital social.

Embora a obra apresente uma leitura descritiva neomarxista sobre a relação fragmentada do espaço e da cidadania, ela traz uma distinta visão prescritiva de mudança de paradigmas em relação à leitura marxista tradicional, fundamentando-se em uma leitura normativa neoinstitucional do espaço, na qual os indivíduos, suas organizações e suas culturas importam na construção de alternativas justamente por trazerem consigo as experiências de culturas populares e espaços vividos, os quais se coadunam na formação de capital social.

A mudança de paradigma fundamentada em um modelo cívico de democracia deliberativa com valorização da cidadania ativa em detrimento de um modelo político-econômico de democracia representativa com cidadania passiva é vista na obra de Milton Santos não como um processo fácil ou linear, mas antes, um processo vivo e dinâmico permeado por conflitos entre diferentes culturas e espaços próprios de uma geografia assimétrica da cidadania, muito próximo à concepção dialógica do espaço público como espaço comunicacional de Habermas (1984).

Com base nestas discussões, observa-se que a construção de uma cidadania baseada em princípios de solidariedade, liberdade, de personalidade ativa dentro de um projeto social compreende que o exercício da cidadania não é uma conquista individual e tão pouco se esgota na mera confecção de uma ou outra lei, trata-se de um processo vivo e dinâmico demandante de constantes ampliações das arenas de democracia deliberativa em que haja a possibilidade de construção de uma cidadania ativa ligada à sua realidade geográfica de cultura popular e espaço vivido.

Conclui-se que a obra oferece uma leitura agradável e instrutiva, sendo amplamente recomendada como um livro clássico, tanto, para o público geral que objetiva fomentar um modelo cívico e participativo de democracia, quanto, para o público especializado de cursos de graduação e pós-graduação que objetiva compreender as contribuições de um intelectual às Ciências Geográficas e porque elas continuam possuindo uma natureza assincrônica de resposta e militância normativa em prol da sócio construção espacial da cidadania.

 

REFERÊNCIAS

ELIAS, Denise. "Milton Santos: a construção da geografia cidadã". Revista Scripta Nova, vol. VI, n. 124, 2002.

Habermas, Jürgen. The theory of communicative action. vol 1.  Boston: Beacon Press, 1984.

SANTOS, Milton. O Espaço do Cidadão. São Paulo: Editora Nobel, 1987.

 

 


Palavras-chave


Geografia Cidadã; Espaço cidadão; Milton Santos

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DOI: https://doi.org/10.26694/equador.v4i4.4334

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Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia (PPGGEO), do Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL), da Universidade Federal do Piauí (UFPI)

ISSN 2317-3491

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