SANDEL, Michael J. The tyranny of merit: what's become the commom good? New York, EUA: Editora Farrar, Straus and Giroux, 2020.

SANDEL, Michael J. The tyranny of merit: what’s become the commom good? New York, EUA: Editora Farrar, Straus and Giroux, 2020.

Adan John Gomes da Silva*


Em seu novo livro, A tirania do mérito, o filósofo e professor estadunidense Michael J. Sandel retoma alguns dos principais traços de sua filosofia política, dessa vez para analisar o que considera ser o papel erosivo que a meritocracia teria sobre uma comunidade cívica forte e saudável, e como esse ideal, inserido em um contexto de crescente desigualdade e de uma forma tecnocrata de governar, culminou na eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e no Brexit, no Reino Unido. Dessa análise o autor deduz ainda quais seriam os passos necessários para atenuar, ou mesmo reverter, os efeitos nocivos do que ele passou a chamar de tirania do mérito.

Já na introdução do livro ele mostra como o ultraje público causado pela descoberta de um esquema fraudulento de ingresso à universidade serviu para evidenciar o quanto a sociedade estaria comprometida com o ideal meritocrático. E isso porque, para além de ver esse esquema fraudulento como uma forma desonesta de ter acesso às supostas oportunidades que a universidade é capaz de oferecer, a opinião pública também condenava o fato de que pessoas que não precisaram se esforçar usufruíssem da mesma estima daqueles que entraram na universidade por mérito próprio. Com efeito, segundo o autor, a escolha dos pais abastados por gastar verdadeiras fortunas para simular a aprovação legítima de seus filhos, quando podiam simplesmente deixar-lhes uma boa herança, comprova que eles buscavam algo além de um futuro confortável para seus filhos. O que eles buscavam comprar era o "brilho do mérito".

No primeiro capítulo, Vencedores e perdedores, é onde Sandel faz a conexão entre essa constatação e o clima reinante quando da eleição do presidente Donald Trump em 2016. Segundo ele, a despeito da popularidade de Trump entre grupos xenófobos, anti-imigração e partidários de um crescente populismo nacionalista, sua eleição deveu-se especialmente a sua habilidade em tocar em um conjunto de queixas populares as quais outros políticos sequer chegaram a notar, e que diziam respeito principalmente ao ressentimento que as classes mais populares sentiam diante de seu fracasso em prosperar em uma sociedade meritocrática, e à condenação que acompanhava esse fracasso.

O autor explica que a insistência dos governantes em responder ao aumento da desigualdade ocasionado pela globalização por meio de um discurso que enaltecia a meritocracia – isto é, a ideia de que todos têm a oportunidade de crescer, desde que se tenha talento e se trabalhe duro – trouxe implícito o raciocínio de que cada um seria responsável pela sua própria posição social, e, portanto, merecedor dela. Com isso, tornou-se mais fácil culpar os menos afortunados pela sua condição e, consequentemente, mais difícil de demonstrar solidariedade por eles.

Cabe aqui lembrar que essa não é a primeira vez que o filósofo estadunidense chama atenção para os efeitos nocivos que um foco excessivo em nossa autossuficiência pode ter. Em Contra a perfeição (2007), ao argumentar contra a possibilidade de que as pessoas pudessem escolher seus próprios talentos por meio de aprimoramentos biomédicos, esse autor já tinha em mente a estreita relação entre a contingência de nossa herança genética e nossa capacidade de nos colocarmos no lugar daqueles que foram menos sortudos nesse quesito. Aqui Sandel retoma essa temática ao alertar para a tendência que a meritocracia tem em nos fazer sentir responsáveis por todos os aspectos de nosso sucesso, ameaçando assim nossa humildade e solidariedade pelos menos afortunados. Daí ele concluir que a revolta pública contra as elites seria muito mais devido ao efeito dessa ética meritocrática, que foi capaz de gerar arrogância entre os vencedores e ressentimento e humilhação entre os perdedores ao insinuar que "talvez o rico seja rico porque merece, e os pobres mereçam ser pobres". Isso explica porque o autor está muito mais preocupado com o próprio ideal meritocrático do que com questões de justiça relacionadas, visto que nem mesmo uma sociedade perfeitamente igualitária estaria livre desse tipo de efeito.

Como agravante, ele atenta ainda para o caráter tecnocrata que a política havia assumido também como reação à globalização. Nesse sentido, lembra que foram os governos marcadamente liberais de Ronald Reagan nos Estados Unidos e de Margaret Thatcher no Reino Unido que deram início a essa tendência ao enxergar os mecanismos de mercado também como ferramentas para se alcançar o bem público. Como consequência, questões públicas que até então eram permeadas por divergências morais e ideológicas e para as quais a opinião dos cidadãos comuns era importante passaram a ser tratadas como questões de eficiência econômica administradas por especialistas e inacessíveis ao grande público.

O filósofo estadunidense já havia expressado sua preocupação com esse tipo de sobreposição. Em O que o dinheiro não compra (2012), ele argumentou exaustivamente a favor da ideia de que quanto mais esferas de nossa vida são dominadas pela lógica do mercado, menores são as oportunidades para ricos e pobres conviverem juntos e sentirem que fazem parte de uma mesma comunidade. Dessa vez, ele acusa a forma tecnocrata de governo de criar um abismo semelhante; ao lidar com questões públicas como se fossem questões econômicas, inviabiliza um espaço de debate em que qualquer um possa participar.

Sandel reconhece o valor do mérito e lembra que escolher com base nesse critério é a coisa mais justa e eficiente a se fazer. Daí ele dedicar seu segundo capítulo – Grande porque bom: uma breve história moral do mérito – a explorar as raízes do pensamento meritocrático e como o foco que ele coloca na maestria e autoconstrução acabou por torná-lo tóxico.

Nesse sentido, ele lembra que a noção de que nosso destino reflete nosso mérito é uma constante na civilização ocidental, sendo inclusive um tema central na teologia cristã, que, por muito tempo, debateu se os favores divinos e a salvação eterna seriam dados como recompensas por nosso comportamento ou simplesmente atribuídos de acordo com a vontade e graça de Deus. E, embora essa última versão tenha tido notória representação na história através de nomes como Agostinho, Lutero e Calvino, a ideia de que somos responsáveis pelo nosso destino e pela nossa salvação acabou prevalecendo, trazendo consigo a tendência que temos em enxergar o sofrimento e o infortúnio como sinais de pecado, e supor que aqueles que sofrem o fizeram por merecer.

Como essa forma de ver a salvação e o aspecto punitivo que ela trouxe consigo infiltrou-se no discurso político é alvo do terceiro capítulo, A retórica da ascensão. Nele, Sandel mostra que o discurso segundo o qual somos responsáveis pelo nosso próprio sucesso, embora seja parte do dito "sonho americano", só veio a ganhar força a partir de Reagan e Thatcher e de seus governos liberais. E embora essa retórica tenha se consolidado como um ponto comum no discurso dos chefes de estado que os sucederam, a imobilidade social persistente fez com que ela finalmente perdesse sua capacidade de inspirar, fazendo com que sua mais recente porta-voz, Hillary Clinton, perdesse para Trump nas urnas.

A partir daí é que Sandel explica que o apoio que este candidato havia recebido era na verdade uma forma de as classes mais populares canalizarem seu ressentimento e reagirem a um discurso que por anos os havia apontado como únicos responsáveis pela sua própria condição. Em outras palavras, aqueles que abraçaram por anos a promessa meritocrática, mas se viram incapazes de prosperar, acabaram se voltando contra os porta-vozes de um discurso que implicitamente os responsabilizava pela crescente desigualdade.

No quarto capítulo – Credencialismo: o último preconceito aceitável –, o filósofo estadunidense mostra como políticos de ambos os espectros, ao invés de atacarem o problema da desigualdade por meio de reformas econômicas, preferiram dar vazão ao credo meritocrático incentivando uma busca pela igualdade de oportunidades por meio da educação. Isso é o que teria dado origem ao que ele considera um dos efeitos colaterais mais irritantes da arrogância meritocrática, o credencialismo, isto é, a ideia de que o sucesso e fracasso de uma pessoa estão intimamente ligados à sua capacidade em conquistar um diploma universitário.

Outra expressão desse preconceito seria a crença de que, quanto mais bem qualificados academicamente nossos governantes, melhor sua capacidade para realizar um bom governo. E, embora Sandel negue que haja aí uma ligação necessária – já que seria preciso adicionar à lista de qualidades de um governante uma habilidade de deliberar sobre o bem comum e persegui-lo efetivamente –, ele descreve como a forma de governar tecnocrata fez uso dessa suposta ligação para reforçar a ideia de que a tomada de decisões sobre assuntos públicos estaria além do alcance do cidadão comum e caberia a experts bem informados.

É nesse ponto que vemos Sandel resgatar um dos tópicos mais recorrentes em seus livros; a de que a tentativa de governar de uma forma neutra e acima de qualquer consideração moral e ideológica estaria fadada ao fracasso. Com efeito, aqui ele destaca que o uso cada vez mais frequente da oposição entre "inteligente" e "burro" e da expressão "a coisa inteligente a fazer" no discurso político seria a tentativa mais recente por parte das elites políticas para empregar uma linguagem neutra, livre de posicionamentos morais, dando a impressão de que qualquer discordância sobre questões públicas seria devida a uma mera questão de falta de informação e não a uma discordância ideológica.

Fazendo eco a ideias defendidas já no seu clássico Justiça (2009), Sandel assevera que, embora o apelo por neutralidade e objetividade seja o grande atrativo do discurso tecnocrata, é também sua maior fraqueza, pois acaba afastando os líderes políticos de questões de justiça e bem comum que são essencialmente ideológicas, passíveis de discordância e próprias de toda democracia. Escapar delas ao classificar as partes envolvidas entre "bem informados" e "mal informados", ou mesmo "inteligentes" e "burros" acaba dispensando a participação do cidadão comum, que se sente assim cada vez menos relevante.

Sandel inicia o capítulo seguinte, Ética do sucesso, lembrando-nos de que a meritocracia não é um remédio para a desigualdade, mas para o imobilismo social. Com efeito, mesmo uma sociedade em que houvesse uma verdadeira igualdade de oportunidade e a chance de ascender valendo-se apenas de seus talentos e trabalho estaria sujeita a desigualdades, com a única diferença de que aí elas estariam justificadas por um sistema meritocrático.

Mas aqueles que defendem a desigualdade com base na meritocracia, continua o autor, ignoram que certos talentos – decisivos para o sucesso em diversas áreas – e o fato de eles serem valorizados em uma certa sociedade não são mérito de quem os possui, e que por isso pensar no mérito como um critério de justiça seria algo falho. Essa observação do autor, inclusive, complementa a recusa que ele já havia feito em Contra a perfeição aos aprimoramentos biomédicos, visto que a possibilidade de que esses talentos deixassem de ser aleatórios e passassem a ser fruto da escolha deliberada das pessoas serviria para fortalecer ainda mais a arrogância meritocrática.

Contudo, aqui Sandel faz o leitor notar que, mesmo versões alternativas de justiça, que não a fazem depender do mérito – como o liberalismo de livre mercado de Friedrich Hayek e o liberalismo igualitário inspirado por John Rawls – acabam não se distanciando muito das atitudes danosas fomentadas pela meritocracia; a arrogância entre os bem-sucedidos e ressentimento entre os perdedores.

Mas, se a meritocracia é o problema, qual seria a solução? Essa é a questão que Sandel começa a tentar responder em seu sexto capítulo, A máquina de triagem, e cujo ponto de partida é reconhecer que não precisamos descartar o mérito na alocação de trabalhos e papéis sociais, mas repensar a forma como entendemos o sucesso, despojando-lhe das características que ele assume na educação e no trabalho.

No que diz respeito à esfera da educação, ele sugere que o caráter exclusivista das universidades – responsável por insultar os que não conseguiram entrar e também por impor uma ansiedade extrema sobre os que conseguem – poderia ser combatida ao criarmos um mecanismo que pusesse em evidência o que, segundo ele, já seria verdade; a ideia de que nenhum de nós é totalmente responsável por nosso destino.

Para ele, cada universidade deve realizar uma seleção preliminar entre os candidatos, a fim de separar aqueles que dispõem do mínimo de qualidade para frequentar a universidade, e, dentre os selecionados – que certamente ainda seriam muitos para o número de vagas disponíveis –, distribuir as vagas por meio de uma loteria. Com essa proposta, Sandel pretende selecionar os que possuem mérito suficiente para ingressar na faculdade – tratando-o como um limite de qualificação, ao invés de como um ideal a ser maximizado – ao mesmo tempo em que insere um elemento de aleatoriedade suficientemente forte e claro para diluir a arrogância dos selecionados e o ressentimento dos excluídos, sem com isso diminuir a qualidade e a diversidade que se espera de uma universidade.

Complementar a essa proposta, Sandel também diz que devemos nos esforçar para tornar o sucesso na vida menos dependente de um diploma universitário, vendo outras formas de educação e os profissionais que dali resultam com o respeito que merecem. Essa mudança de perspectiva tomaria por base a conscientização de que muito do prestígio das universidades depende do seu propósito de preparar as pessoas não apenas para o mundo do trabalho, mas também para serem pessoas moralmente reflexivas e capazes de deliberar sobre o bem comum, propósito para o qual o diploma universitário não tem monopólio. A educação cívica, lembra ele, pode florescer em outros tipos de instituições que, por conta disso, merecem estima análoga.

No seu último capítulo, Reconhecendo o trabalho, o autor estende essa proposta para que ela possa também recuperar a estima dos trabalhadores comuns e mudar a forma como a sociedade honra e recompensa o trabalho. A esse respeito, ele começa sugerindo que devemos resistir à tentação de ver o salário do trabalhador como uma boa medida de sua contribuição para o bem comum, já que isso implicaria em afirmar que o bem comum se alcançaria simplesmente maximizando o bem-estar do consumidor. Uma versão mais apropriada do bem comum, endossada por ele, mudaria o foco para nossa capacidade de deliberarmos com nossos concidadãos sobre como conceber e perseguir uma sociedade justa e boa, em que nossas vidas sejam significativas, e para a qual a atividade econômica é apenas um elemento, e não o todo.

Sandel sugere assim que mudemos o foco da justiça distributiva para uma justiça contributiva, ou seja, que para além de buscarmos uma igualdade salarial, devemos sobretudo nos equiparar às pessoas no que diz respeito à importância de suas atividades para o bem comum. Daí ele sugerir dois tipos de ações que visem a expressar certo julgamento social a esse respeito; promover um pagamento suplementar aos trabalhadores de baixa renda, a exemplo do que fez a Europa durante a pandemia de 2020 para evitar que eles fossem demitidos, e taxar de forma mais incisiva aqueles cuja contribuição para o bem comum está muito aquém em relação às recompensas que recebem do mercado.

Por fim, Sandel dedica sua conclusão, Mérito e bem comum, para enfatizar a razão mais profunda por trás de sua crítica à meritocracia; seu papel avesso ao tipo de ligação cívica que uma boa democracia exige. Daí ele destacar a importância de perseguirmos não apenas uma igualdade de oportunidade, mas também uma igualdade de condições, capaz de fornecer uma vida decente mesmo àqueles que não alcançaram grande riqueza ou posições privilegiadas, para que estes não se sintam excluídos e possam, juntos com seus concidadãos, deliberar sobre o bem comum.

O grande mérito desse livro de Sandel é conseguir dar continuidade de forma coerente a ideias expostas em outros trabalhos e utilizá-las para analisar acontecimentos sempre recentes. Não é surpresa, portanto, que por todo o livro encontremos passagens e ideias que nos soam bem familiares: o papel erosivo da meritocracia, os riscos de se tentar resolver questões polêmicas recorrendo a princípios neutros, o perigo da influência cada vez maior do dinheiro em nossa vida social e a importância do sentimento de pertencimento na construção de uma democracia saudável. Todos esses temas são revistos nesse livro.

Isso, contudo, não significa que o autor se limite a repetir o que já foi dito anteriormente. Com efeito, esse livro traz, como nenhum outro, sugestões práticas do que pode ser feito para amenizar os problemas que ele analisa. Além disso, ele traz novos elementos que prestam significados sempre mais pertinentes aos já familiares. Seja recorrendo ao discurso político, ao mundo acadêmico e do trabalho ou mesmo aos efeitos da pandemia mundial de Covid-19, Sandel segue adicionando cada vez mais reflexões sobre o que precisamos para alcançar o bem comum.


* Mestre e doutorando em filosofia pela UFRN. Professor de filosofia no IFRN.

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ISSN 2317-3254